sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O CASO

Um conto de Joana Belarmino

- espera por mim, gritou ela, mas não sabia para quem gritara, porque não tinha estado ninguém ali. Mesmo assim, emitiu mais uma vez aquela estranha ordem, correu a pegar a bolsa, abriu a porta e saiu ao acaso.
Caminhou primeiro com pressa, a olhar para os lados, e na esquina, soube que já não encontraria nada, nem ninguém.
E viu, de repente, na porta da padaria, um velho a segurar um saco pesado de pão de anteontem, caminhando vagarosamente para a rua.
Sem dizer nada, sem sequer o olhar, regulou seu passo com o dele, porque mesmo que o seu espírito ansiasse por pressa e movimento,   precisava apossar-se do caminhar daquele velho, precisava experimentar essa fatia de vida que conquistara, assim, no ocaso.
E o velho, que todos os dias ia à padaria, buscar o pão de anteontem, que a bondosa funcionária do caixa guardava ciosamente para aquela fome, o velho soube que algo havia alterado a escrita daquele seu princípio de noite.
Soube-o, não por ter olhado para ela. Soube-o, pela ciência que tomava, pouco a pouco, do caminhar a seu lado, do ritmo dos pés dela, as chinelas havaiana chiando mais rápido que o arrastar da velha alpercata dele, como se o passo dele, inconscientemente, imprimisse no meio fio a fala roufenha “espera por mim”; como se o passo dela, regulado com o dele, dissesse ao meio fio uma silabaria nova que ele não conseguia ainda traduzir de todo.
E aquele diálogo de pés desbravou as ruas movimentadas da cidade, sem que olhos se vissem, sem que braços se tocassem, mesmo nos rincões mais apertados de espaço.
E finalmente encontraram a morada do velho, num arremedo de rua, fingimento de casas, forradas de lixo por dentro e por fora.
E foi nesse momento que ela surpreendeu um resto de alegria nos olhos do velho. E naquele relâmpago, viu mais do que alegria. Viu que o velho tinha sonhos.
Sonhos ternos, quentes, sonhos guardados em romances de amor, que ele lia, todas as noites, na sua tosca mesa de caixote, sonhos que ele embrulhava no cheiro do pão de anteontem, sonhos que ele ofertava à bondosa caixa da padaria, com a beleza de um lirismo que já não existia mais.
E quis rapinar os sonhos do velho, ali mesmo, antes que ele adentrasse o seu arremedo de casa.
E apossou-se da sacola do pão de anteontem, que resvalou para uma possa de lama.
E fez escurecer a vista do velho, e deu-lhe tremura aos pés e às mãos, e deu-lhe a agonia da morte,  e enquanto a massa do pão unia-se à água suja da rua, engoliu em silêncio todos os sonhos do velho.

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